Festival Futurama 2024
Entre trabalho e dias: processos criativos em festa no Baixo Alentejo
Texto de John Romão, diretor artístico do Festival Futurama
A edição de 2024 do Festival Futurama é uma celebração da diversidade e da profundidade do ecossistema cultural e artístico que nutrimos no Baixo Alentejo. Inspirado pela antiga sabedoria de Hesíodo, que relacionava o trabalho agrícola com o ritmo das estações e a persistência da vida na terra, proponho ligar esta perspetiva ao trabalho diário da criação artística nesta região, tradicionalmente agrícola. Da mesma forma que a agricultura molda e nutre a terra, a criação artística vai transformando e enriquecendo o tecido cultural do Baixo Alentejo, trazendo a cada estação um novo ciclo de cultivo e renovação.
O Festival Futurama celebra em 2024 mais um ciclo contínuo da criatividade de artistas e comunidades locais, que partilham no festival o seu amor à terra, ao território, à criação e à experimentação que é cultivada ao longo do ano.
A nossa missão de desafiar experiências que cruzam fronteiras, sejam elas geográficas (entre municípios do Baixo Alentejo e Espanha) ou artísticas (entre a música, a literatura, a dança, o teatro ou as artes visuais), reflete-se na diversidade que está presente na programação. Há desde logo duas colaborações fascinantes, desenvolvidas em residências artísticas ao longo do ano: a performance de voz e movimento da dupla catalã Aurora Bauzà & Pere Jou com o Coro de Câmara de Beja (Igreja de Santa Maria, 12/10, Beja), projeto desenvolvido em parceria com o Festival Escena Património (Espanha) onde esta criação ante-estreou em Cáceres, assim como o concerto da artista andaluza Rocío Guzman com a artista multidisciplinar Tânia Carvalho (Cineteatro da Mina de S. Domingos, 05/10, Mértola), resultante de um ansiado encontro entre as artistas. São duas colaborações entre artistas portugueses e espanhóis, que vão cruzar culturas, referências, estilos e influências, enriquecendo o diálogo artístico entre Portugal e Espanha, a partir do Baixo Alentejo.
O Cante Alentejano, celebrando em 2024 os seus dez anos como Património Cultural da Humanidade pela UNESCO, continua a ser um pilar fundamental do nosso festival. O projeto especial que une a poesia inédita, encomendada a autores portugueses como Rui Cardoso Martins, Alice Neto de Sousa, Afonso Reis Cabral ou Maria do Rosário Pedreira, com grupos de cante de Beja, Serpa e Alvito, e as compositoras Celina da Piedade e Ana Santos, é uma homenagem ao poder da tradição e da experimentação, mostrando como a memória, o presente e a criatividade se podem cruzar num concerto inédito em Serpa e Beja.
As ruas de Beja e Serpa serão palco de um encontro sonoro especial: uma arruada inédita que coloca em diálogo harmonioso os 24 chocalhos do Grupo Folclórico Os Chocalheiros de Vila Verde de Ficalho (Serpa) com os tambores do Grupo de Percussão Rufar e Bombar (Beja). Esta arruada é uma performance e uma caminhada sonora que cruza as tradições e os ritmos que definem a identidade cultural da região, num gesto de coesão comunitária.
A dramaturgia, a política e o ativismo também têm um espaço significativo no festival, particularmente em Serpa, pela mão da encenadora Joana Craveiro e do Teatro do Vestido, que nos convida a refletir sobre memórias silenciadas durante a ditadura e questões contemporâneas, como a ocupação da Palestina. São duas performances teatrais apresentadas a 27-28/09, em Serpa, que recorrem à investigação de arquivo que Craveiro tem desenvolvido sobre os arquivos da ditadura e à viagem que a artista fez à Palestina, no início do conflito armado, sobre a qual, diz a artista: “É uma experiência que transforma, não se pode deixar de ver aquilo que se viu”. Duas peças teatrais - “Silêncios Persistentes” e “Desver” - que oferecem perspetivas críticas e profundas sobre os desafios e as narrativas que tecem o mundo.
O íntimo e o coletivo, a memória e a criação são conceitos explorados no emocionante espetáculo "Miquelina e Miguel", que foi considerado o Melhor Espetáculo de Dança pelo Jornal Expresso, em 2022, onde o coreógrafo e bailarino Miguel Pereira nos convida a experienciar um espetáculo pessoal e emotivo, através da dança com a sua mãe, Miquelina, que sofre de demência. A dança é sempre um verbo do presente. Ligando o passado e o futuro, “Miquelina e Miguel” habitam o presente, no palco do Teatro Municipal Pax Julia (Beja), a 11/10, com um “espetáculo de cumplicidade, ternura, muito riso e repleto de momentos inesperados, como a vida, que escapa ao controlo de ideias de perfeição, eficácia ou a qualquer plano” (Cláudia Galhós, Expresso, 01/07/2022).
O festival também é um espaço de formação, empoderamento e criação para as novas gerações, através da partilha pública dos processos criativos desenvolvidos ao longo do ano entre artistas de artes visuais (Maria Imaginário), da dança (Filipa Francisco) e da arquitetura / artes visuais (Os Espacialistas), com turmas de escolas secundárias e profissionais. Resultado em instalações, performances e exposições-percurso no território, estas criações assinadas entre artistas destacados do panorama nacional e estudantes locais transformam o espaço público de Beja, Serpa e Mértola, num campo fértil para novas ideias, interações e expressões artísticas.
No Bairro das Pedreiras, em Beja, o Futurama promove mais um workshop dedicado à comunidade cigana. Pela mão da coreógrafa e bailarina Piny, que propõe as suas danças híbridas de várias culturas e tempos, reafirmamos o nosso compromisso com a inclusão social e cultural, valorizando a riqueza multicultural do Baixo Alentejo como um recurso precioso que, como a terra, precisa ser respeitado e nutrido.
Também, através de inscrições abertas a todas as pessoas interessadas, a coreógrafa bejense Márcia Lança guiará o grupo de Embaixadores Futurama, num projeto participativo que representa a essência da nossa abordagem: a arte como um espaço de diálogo, construção e celebração comunitária. E se a celebração é garantida ao longo destes dias de festival, vamos mesmo terminar a dançar ao som de um dos Djs e produtores musicais mais promissores da música eletrónica portuguesa, Pedro da Linha, que vem da Linha de Sintra até Beja para nos propor um diálogo entre sonoridades urbanas e lusófonas com o cancioneiro alentejano.
O Festival Futurama 2024 reflete a dedicação ao processo artístico contínuo e ao diálogo inter-cultural e inter-disciplinar. Aqui, acreditamos que as práticas artísticas são um caminho em constante evolução, e convidamos todas as pessoas a juntarem-se a nós nesta celebração de processos criativos e projetos inéditos na região, que são a colheita da paixão, da persistência e da criatividade de artistas e comunidades, absolutamente comprometidos com o presente.